I – Enquadramento
No passado dia 23 de outubro de 2025, foi publicado no Diário da República n.º 205/2025, o Decreto-Lei n.º 112/2025, de 23 de outubro, o qual, para o que aqui releva, procedeu à décima quinta alteração ao Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual.
A predita alteração, conquanto incida em apenas dois números de um único artigo do CCP, mais concretamente os n.ºs 1 e 3, do artigo 43.º do CCP, todavia, representa, de forma impressiva, uma mudança de paradigma para o setor das obras públicas, dado que, permite que as entidades adjudicantes escolham livremente em recorrer à figura da empreitada de conceção-construção, sempre que “segundo juízos de discricionariedade e à luz dos interesses públicos em presença, concluam pela adequação daquela modalidade contratual”.
Recorde-se que, a modalidade construtiva em apreço, antes da alteração operada pelo Decreto-Lei n.º 112/2025 de 23 de outubro, só poderia ser aplicada pelo dono da obra pública (no que tange ao regime geral previsto no CCP), em condições excecionais, especificamente reguladas na anterior redação do n.º 3, do artigo 43.º, do CCP, nomeadamente, nos casos em que o caderno de encargos fixava (para o empreiteiro) obrigações de resultado decorrentes da utilização da obra, assim como nas situações em que a complexidade técnica do processo construtivo reclamasse, em razão da tecnicidade própria dos concorrentes, a especial ligação destes à conceção da obra (sobre o regime da empreitada de conceção-construção antes do DL n.º 112/2025, vide, com maiores desenvolvimentos, o nosso “O que é uma Empreitada de Obras Públicas de Conceção-Construção”, em https://direitos-e-deveres.blog/2023/11/23/o-que-e-uma-empreitada-de-obras-publicas-de-concecao-construcao/).
Outrossim, note-se que, paralelamente ao regime excecional previsto no CCP (regime anterior à redação introduzida pelo DL n.º 112/2025), existia, pelo menos, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro (onde o legislador criou um regime especial da empreitada de conceção-construção), a possibilidade de a entidade adjudicante optar livremente entre a empreitada dita “tradicional” (em que o caderno de encargos inclui um projeto de execução da obra) e a empreitada de design & build (em que, por seu turno, a elaboração do projeto de execução incumbe ao empreiteiro, em adição ao trabalhos de construção strictu sensu).
Registe-se, porém, que, este regime especial tinha, por um lado, um âmbito de aplicação limitado (cfr., artigos 2.º, e 3.º a 6.º, da Lei n.º 30/2021, apenas podia ser mobilizado pelas entidades adjudicantes em função do financiamento europeu associado aos contratos em causa, ou em função do tipo de obra a realizar), e, por outro lado, um prazo de vigência aparentemente limitado (estava prevista pelo legislador uma reavaliação do antedito regime até ao dia 31 de dezembro de 2026 – cfr., artigo 7.º do DL n.º 78/2022).
Ora, com a alteração introduzida pelo DL n.º 112/2025, o legislador veio assim pôr cobro ao regime de excecionalidade, que constituía, no setor das obras públicas, pelo menos, desde 1969 (cfr., artigo 7.º do DL n.º 48871, de 19 de fevereiro de 1969 – RJEOP/69), uma autêntica “imagem de marca” da modalidade construtiva de design & build.
Com o presente escrito, pretendemos, de uma banda, aquilatar sobre as razões que levaram o legislador a alterar um regime de exceção (que durava há sensivelmente 56 anos no setor das obras públicas), e, de outra banda, aferir se o legislador deveria ter aproveitado o ensejo para incluir (ou não) na predita alteração ao CCP, dois temas específicos no que toca aos procedimentos pré-contratuais atinentes à formação de contratos de empreitada de conceção-construção: (i) documentos instrutores das propostas; e (ii) avaliação das propostas.
II – Ratio legis da alteração da empreitada de conceção-construção
No preâmbulo do DL n.º 112/2025, com pertinência para o presente escrito, assinala o legislador o seguinte:
“A inversão da tendência de crescimento dos preços da habitação constitui um dos principais desafios da sociedade portuguesa atual, sendo por isso assumida como um desígnio do Estado e uma das prioridades do XXV Governo Constitucional. Por esse motivo, e sem prejuízo da necessidade de uma revisão estrutural do Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual, com vista a concretizar integralmente os objetivos da reforma do Estado, atualmente em curso, impõe-se o desenvolvimento imediato de mecanismos de mobilização e estímulo dos agentes do setor da construção, com vista ao reforço da oferta habitacional e, consequentemente, à mitigação do desequilíbrio entre a oferta e a procura.
Com vista à referida mobilização, importa, designadamente, eliminar entraves legais ao aproveitamento, pelas entidades adjudicantes, dos benefícios das técnicas construtivas associadas à fabricação «off site» e, em geral, das vantagens associadas à contratação combinada das prestações de conceção e construção.
Com efeito, assiste-se à evolução e ao desenvolvimento, nos planos nacional e internacional, de novas técnicas e modelos de construção, designadamente através da fabricação «off site» de partes da obra, o que se traduz em vantagens consideráveis, quer ao nível dos prazos de construção, quer ao nível dos respetivos custos. Contudo, em sede de contratação pública, a adoção destas técnicas está limitada, porquanto o recurso ao tipo contratual vulgarmente conhecido por «conceção-construção» – que combina no mesmo contrato as prestações relativas à elaboração do projeto de execução de uma obra (conceção) e à execução dos trabalhos (construção) – permanece no CCP, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual, como uma exceção.
É certo que, no artigo 2.º-A da Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, na redação que lhe é dada pelo Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro, foi consignado um regime especial de empreitadas de conceção-construção, no âmbito de um elenco de medidas especiais de contratação pública destinadas à aceleração e simplificação procedimental, mas apenas aplicáveis a contratos que se destinem à execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, incluindo os integrados no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência, e com um prazo de vigência até 31 de dezembro de 2026. Sucede que o carácter especial e transitório dessa medida condiciona o aproveitamento transversal das vantagens associadas à modalidade de empreitada em regime de conceção-construção e, por conseguinte, a própria dinamização do setor da construção.
Assim, procede-se à alteração do artigo 43.º do CCP, passando as entidades adjudicantes a poder recorrer à figura da conceção-construção não apenas em casos excecionais e devidamente fundamentados, mas sempre que, segundo juízos de discricionariedade e à luz dos interesses públicos em presença, concluam pela adequação daquela modalidade contratual”.
Portanto, na esteira do antedito preâmbulo, a alteração introduzida pelo DL n.º 112/2025, ao regime da empreitada de conceção-construção, é vista como um instrumento que permitirá – na perspetiva do legislador -, reforçar a oferta habitacional, e, por essa via, inverter a tendência de crescimento dos preços da habitação, considerando que, a modalidade construtiva em apreço, ao acomodar técnicas e modelos de construção “off site”, impacta ao nível dos prazos de construção e dos custos associados às obras em causa.
Contudo, e sem embargo de admitirmos que, os motivos subjacentes à 15.ª alteração ao CCP, se revelam legítimos, em termos de política legislativa, atendendo aos graves problemas de habitação que assolam atualmente o nosso país, porém, já temos algumas reservas sobre a adequação e a necessidade de se estender a flexibilização da empreitada de conceção-construção a todo o tipo de obras públicas, dada a concreta amplitude da redação do artigo 43.º, n.º 3, do CCP, introduzida pelo DL n.º 112/2025.
Na verdade, com esta nova redação, as entidades adjudicantes podem adotar – “segundo juízos de discricionariedade e à luz dos interesses públicos em presença”, a modalidade construtiva de design & build, para qualquer tipo de obras, e não apenas para obras que visem o reforço do parque habitacional (público ou privado).
Antes de prosseguirmos, importa assinalar que, da nossa parte, não temos qualquer posição de princípio contrária, no que concerne à adoção por parte do Estado Contratante, da modalidade construtiva de design & build, como alternativa à empreitada tradicional (design then bid).
Ora, é unívoco que, a empreitada de conceção-construção, permitirá, por uma banda, que, a entidade adjudicante conclua o procedimento pré-contratual de forma mais célere, comparativamente com a empreitada tradicional (considerando que, na empreitada de conceção-construção apenas existirá um procedimento, enquanto que, por sua vez, na empreitada tradicional, em princípio, serão necessários dois procedimentos: um para a escolha do projeto e outro para a obra, salvo nas situações em que a entidade adjudicante tenha condições de elaborar internamente o projeto de execução da obra, por recurso aos seus serviços), e, por outra banda, atenuar o risco de projeto (face ao disposto no artigo 378.º, n.º 2, do CCP).
Acresce que, a experiência dos países anglo-saxónicos, no tocante à utilização da figura da empreitada de conceção-construção permite-nos, igualmente, extrair exemplos relevantes e importantes, quanto à eficiência do antedito modelo construtivo, para a atividade contratual a desenvolver pela administração pública.
Todavia, e sendo certo que, as vantagens do modelo construtivo de design & build não devem, de forma alguma, em face dos princípios da prossecução do interesse público e da boa administração ser descuradas pelo Estado Contratante, a verdade é que, porém, as especificidades de tal modelo construtivo carecem de ser devidamente enquadradas com a realidade do nosso país, em especial no que concerne à estrutura do respetivo tecido empresarial.
Ora, e observando de perto a dimensão da maioria das empresas em Portugal, afigura-se-nos, que, o princípio da concorrência aconselhará uma utilização cautelosa da empreitada de conceção-construção por parte das entidades adjudicantes.
Destarte, é notório que, a empreitada de conceção-construção levanta, desde logo, sérias questões, quanto a uma eventual compressão do princípio da concorrência.
Note-se que, a participação num procedimento pré-contratual, que vise a celebração de um contrato de empreitada de conceção-construção, não estará certamente ao alcance de todos os operadores económicos, considerando os meios financeiros e técnicos, que os mesmos têm de empregar para a apresentação de propostas, e, caso sejam bem-sucedidos, para a execução do próprio contrato.
Com efeito, parece-nos evidente que, nem todos os operadores económicos estão em condições de suportar a participação num procedimento pré-contratual, que vise a celebração de um contrato de empreitada de conceção-construção, considerando (i) a obrigação de apresentação de um estudo prévio com as propostas; (ii) a necessidade de o operador económico ter à sua disposição recursos com as qualificações e aptidões técnicas exigíveis, quer para a elaboração dos documentos instrutores das propostas, quer para a elaboração do projeto de execução da obra, aquando da fase contratual; (iii) os riscos que esta modalidade construtiva envolve para o lado do empreiteiro, por força do disposto no artigo 378.º, n.º 2, do CCP.
Concomitantemente, as pequenas e médias empresas (PMEs), que representam aproximadamente 99,9% do tecido empresarial português (segundo dados do INE), podem, naturalmente, vir a ser afetadas, com a utilização da figura da empreitada de conceção-construção, dado que, poderão não ter condições de participar no procedimento pré-contratual, e, outrossim, de executar o contrato, em conformidade com a modalidade construtiva em apreço, cenário que nos leva a aconselhar uma utilização criteriosa do modelo de design & build.
Por conseguinte, parece-nos que, a empreitada de conceção-construção deveria ser reservada para obras com determinadas características específicas, nomeadamente em função da respetiva complexidade – quer do ponto de vista técnico, quer das condições de execução -, do preço, da tecnologia e da inovação a utilizar no processo construtivo, assim como, face à incerteza e imprevisibilidade do processo construtivo.
Nestes casos, dir-se-á que é o próprio princípio da prossecução do interesse público, que, justificará a derrogação do princípio da concorrência, dado que, a empreitada tradicional poderá não constituir o modelo construtivo mais adequado e eficiente, para a realização de obras públicas, que reúnam algumas das características acima enunciadas.
Acontece que, tal choque entre o princípio da concorrência e o princípio da prossecução do interesse público, era resolvido através da norma-regra, que se encontrava prevista na anterior redação do n.º 3, do artigo 43.º do CCP, que só admitia o recurso à modalidade construtiva de design & build em duas situações específicas, para as quais a empreitada tradicional se convocada, poderia não constituir a opção mais eficiente e adequada, considerando as características (especiais) do tipo de obras, que se enquadravam na factispecie da anterior redação do artigo 43.º, n.º 3 do CCP (assunção de obrigações de resultado por parte do empreiteiro e complexidade técnica do processo construtivo).
Posto isto, afigura-se-nos que, a liberalização do regime da empreitada de conceção-construção, operada pelo DL n.º 112/2025, considerando, por um lado, a ratio legis da alteração, e, por outro lado, a extensão do regime a todo tipo de obras, independentemente de as mesmas terem por escopo, ou não, o reforço do parque habitacional (e ajudarem, por essa via, a controlar o crescimento dos custos com a habitação), poderá ofender o princípio da proporcionalidade, por referência à lesão que é provocada pelo regime da conceção-construção ao universo concorrencial, em função dos subprincípios da adequação, da necessidade, e da justa medida.
III – Dois temas que deveriam ter merecido maior atenção do legislador aquando da alteração ao regime da empreitada de conceção-construção
Sem embargo do que acima vai dito quanto à violação do princípio da proporcionalidade (em face da injustificada flexibilização do recurso à empreitada de conceção-construção para todos os tipos de obras), parece-nos ainda assim que, aquando da revisão ao regime da modalidade construtiva em apreço, o legislador deixou de lado dois temas que, no nosso entendimento, careciam de “afinação”, no que concerne ao regime dos procedimentos pré-contratuais tendentes à formação de contratos de empreitada de conceção-construção.
Destarte, por um lado, na nossa prática temos vindo a notar (infelizmente com bastante frequência), que, as entidades adjudicantes em procedimentos pré-contratuais que visam a formação de contratos de empreitada de design & build, definem nos respetivos programas de concurso, a obrigação de os proponentes instruírem as respetivas propostas, sob pena de exclusão, com listas de preços unitários, planos de trabalhos e cronogramas financeiros, documentos esses que, como é sabido, apenas podem ser exigidos quando o caderno de encargos é integrado por um projeto de execução, ou seja, nas situações em que a modalidade construtiva posta a concurso passa pela empreitada tradicional.
Ora, a apresentação dos anteditos documentos no âmbito de um procedimento pré-contratual tendente à formação de um contrato de empreitada de conceção-construção, parece-nos impertinente e excessiva, uma vez que, a elaboração do projeto de execução corresponderá a uma das prestações contratuais do projetista-empreiteiro, e qualquer um dos documentos previstos nas alíneas a), b) e c), do n.º 2, do artigo 57.º do CCP, apenas terá algum tipo de relevância e/ou utilidade se, porventura, já tiver sido elaborado e aprovado um projeto de execução da obra, cenário que na modalidade construtiva em apreço apenas irá ocorrer na fase de execução do contrato.
Por conseguinte, afigura-se-nos que, as normas procedimentais que consagram, para a fase de proposta, obrigações de apresentação de listas de preços unitários, planos de trabalhos e cronogramas financeiros no seio de procedimentos de design & build, violam de forma clara o princípio da proporcionalidade, dado que fixam comandos procedimentais manifestamente desadequados e desnecessários, face aos fins a prosseguir pela entidade adjudicante.
Note-se que, tal como referimos mais acima, o procedimento pré-contratual tendente à celebração de um contrato de empreitada de conceção-construção, envolve, só por si, uma natural compressão do universo concorrencial que poderá participar num procedimento dessa natureza, pelo que, a solicitação aos operadores económicos de documentos impertinentes e desnecessários, tenderá a agudizar tal restrição ao universo concorrencial, com inerentes prejuízos para o interesse público financeiro.
Por essa razão, entendemos que este tema deveria ter merecido algum tipo de atenção por parte do legislador, tanto mais quando este decidiu liberalizar o recurso à empreitada de conceção-construção por parte das entidades adjudicantes, o que tenderá a incrementar exigências procedimentais inúteis e desnecessárias relativamente aos documentos acima referidos.
Por outro lado, no que diz respeito ao critério de adjudicação, afigura-se-nos que, o legislador deveria ter continuado o trabalho positivo, que foi iniciado no âmbito do regime especial contido no artigo 2.º-A, n.º 5, da Lei n.º 30/2021.
Com efeito, o antedito regime especial da empreitada da conceção-construção ao prever que, o critério de adjudicação do contrato de conceção-construção, correspondia a uma modalidade multifator era de aplaudir.
Por seu turno, era também de saudar a previsão de que o critério de adjudicação deveria garantir uma adequada comparabilidade das propostas e incluir, pelo menos, o preço relativo à conceção e o preço relativo à execução da obra.
Parece-nos, neste conspecto, que, parte do regime que constava do n.º 5, do artigo 2.º-A, da Lei n.º 30/2021, deveria assim ter sido transposto para o CCP, na parte relativa ao critério de adjudicação dos contratos de empreitada de conceção-construção (claro está que, a referência à natureza objetiva dos fatores e subfactores do critério de adjudicação, que constava do antedito normativo, teria de ser suprimida, tal como aliás, constituía o entendimento da mais autorizada doutrina).
Contudo, e pese embora a modificação do regime da empreitada da conceção-construção no âmbito do CCP, em que se liberalizou o recurso a esta modalidade construtiva, depois de 56 anos de exceção, todavia, o legislador considerou (no nosso entendimento mal), que o ensejo não justificava uma “afinação”, no tocante às regras atinentes aos critérios de adjudicação e modelos de avaliação das propostas subjacentes aos procedimentos pré-contratuais, que visam a celebração de contratos de empreitada de conceção-construção.
